São Paulo, 468 anos: cidade desumana, generosa, que amamos e odiamos, da cracolândia, da Paulista e do caos

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No aniversário da capital, o poeta Álvaro Alves de Faria escreve uma crônica sobre a metrópole; confira abaixo

ALF RIBEIRO/ESTADÃO CONTEÚDOCena noturna da ciclovia da Avenida Paulista, na região central da cidade de São Paulo

Eis a cidade de São Paulo, 468 anos. Eis a cidade brilhando na noite de seus luminosos e triste nos seus becos escondidos. Eis a cidade, 468 anos. Toda essa gente caminhando para todos os lados, um universo em movimento constante andando em todas as direções em busca da vida de cada dia. Eis a cidade da Avenida Paulista, centro de tudo, centro do dinheiro, centro da elegância, centro da anarquia, centro dos bares que ainda existem com gente que passa a noite discutindo o nada até que chegue a alta madrugada e todos saem para suas casas deixando a revolução para depois. Eis a cidade, 468 anos, a cidade da Paulista e de todas as periferias mais pobres esparramadas pelos bairros distantes, onde crianças brincam esquecidas sem brinquedo nenhum e os trabalhadores chegam com fome, esses que se arrastam nesse exército de desempregados que suplicam o pão de cada dia para os filhos sentados à mesa que não existe esperando um copo de guaraná.

Esta é a cidade que amamos e odiamos com a mesma intensidade, esta cidade que não para, que se move dia e noite, noite e dia. Esta cidade que tem outra cidade debaixo de seu asfalto, outra cidade que vive e corre nos trilhos do metrô e dos fios elétricos, essa cidade que subterrânea leva a mesma vida que a cidade do asfalto e seus prédios com olhos de raiam e escritórios modernos com gente elegante, esta cidade de São Paulo com lindas mulheres atravessando as ruas com gestos delicados, esta cidade das mulheres caladas sentadas nas calçadas esperando alguma moeda em troca de um olhar e de uma palavra. A cidade subterrânea acesa dia e noite com esse metrô, um bicho que avança sempre por nomes de santos, São Judas, Santa Cecília, Santo Amaro, Santa Cruz, Santuário de Nossa Senhora de Fátima, no Sumaré, e tantos outros nomes da geografia paulistana e tantos outros santos e santas debaixo do solo; os trens que vêm de longe, de uma cidade que não tem tamanho, cheios de gente, sempre cheios, assim como os vagões do metrô, sempre cheios, sempre cheios de gente que luta sem parar toda hora; os ônibus sempre cheios, sempre cheios, de uma gente cansada que sai de madrugada e volta no meio da noite de um trabalho difícil e distante, não há tempo para nada, é tudo muito distante, é tudo muito longe; as manifestações no Masp na Paulista, gente que reivindica e ergue bandeiras verdes e amarelas, vermelhas, com a cor do arco-íris, com todas as cores, bandeiras, bandeiras, a cidade das manifestações contra tudo.

É preciso ser contra tudo, o vandalismo, a banalização do crime, cidade desumana mas também generosa, a cidade de refeição a R$ 1, o comércio na 25 de Março, no Largo Treze, as lojas finas de roupas europeias, cidade de tudo quebrado, a cidade tantas vezes abandonada, os monumentos quase destruídos, os vândalos da cidade, São Paulo, 468 anos, os assaltos à mão armada a qualquer hora do dia e da noite em qualquer lugar, a cidade de criminosos que matam por matar, a cidade de São Paulo da cracolândia, onde os párias da vida esperam a hora de morrer diante do olhar do policial e dos traficantes que armam barracas para vender drogas, pessoas mortas que ainda andam por aquelas ruas sem ninguém, senão sombras que perambulam de uma calçada a outra e os traficantes livres, os traficantes livres, os traficantes livres diante da polícia.

Meninas grávidas sem mãe nem pai, eis a cidade de São Paulo, 468 anos, a cidade que tantos amamos, a cidade que odiamos também, a cidade de toda gente brasileira, de Pernambuco,  Alagoas, de Piauí, do Maranhão, de Mato Grosso, cearenses, baianos, do Tocantins, do Brasil inteiro de tantos lugares que nem chegam a existir, a cidade Serra Pelada, onde todos vêm em busca da vida garimpando a terra em busca da salvação, estrangeiros do mundo, todos aqui misturados numa só raça, uma só raça paulistana feita de amor e de dor, quase sempre um amor de desencanto e uma dor que não para nunca. Eis a cidade de São Paulo, 468 anos, o funk, as comunidades de barracos de tábuas e plástico entregues à própria sorte e seja o que Deus quiser, o pancadão que invade as noites como se a cidade fosse de delinquentes que mandando no pedaço e fazem o que bem entendem passando por cima de tudo, a cidade de São Paulo, 468 anos, os moradores de rua que comem da lata do lixo, esses que nada têm nem nunca terão, senão a rua, a mulher, os filhos, o cobertor ralo debaixo do viaduto, nas beiradas dos prédios, esta a cidade que tantos amamos pelo seu desprezo a tudo que é belo, pela destruição de tudo que brilha, pelo desamor de suas autoridades.

Eis a cidade, São Paulo de todos os ódios e de todos os amores para sempre, de homens brutos e mulheres frágeis que desaparecem e se transforma somente em mais um número, eis a cidade, a grande cidade de todos nós, que comemora 468 anos e nem sabe, esquecida que está dela mesma, talvez num beco da rua Aurora, ou nas floriculturas do Largo do Arouche onde os namorados ainda vão comprar rosas vermelhas, a cidade das igrejas, a cidade da Consolação, das saidinhas de final de ano, das saidinhas dos bancos, do dinheiro escasso, as motos no meio do trânsito e do caos, a agressão a todo instante, os momentos amargos, essa amarguridade de sempre que faz parte de sua tez, seu rosto marcado de cicatrizes, a cidade de 468 anos, desumana mas também solidária, sempre de braços abertos nos momentos difíceis, a grande cidade que se perde em seus limites de violência, haveremos de comemorar comendo o imenso bolo das senhoras do Bixiga de Adoniram Barbosa.

São Paulo do Cemitério de Vila Formosa onde estão aqueles encontrados nas valas, que não têm nome nem família, São Paulo de tanto amor, que tanto amamos e tanto machuca, São Paulo, a cidade que dói mas a dor de sempre e segue, segue, segue atravessa seus descaminhos e seus perigos, o sonho ainda possível de sonhar, a cidade de sombras e também encantamentos, é preciso amar a cidade, amar a cidade com esse amor mesmo ferido. Eis a cidade de São Paulo, a cidade de todos nós, a cidade-mundo, de todos, dos que estão à margem, dos que choram, dos que riem, eis a cidade de São Paulo, 468 anos, a cidade que nos pertence e a ela pertencemos com nossa raiva e às vezes silêncio, às vezes ausência, às vezes um abraço que se alonga e não se esquece nunca. Eis a cidade de São Paulo, 468 anos, cidade de todos nós, viva, constante, amarga, escura e de muito brilho de um sol que só ela tem.

*Esse texto não reflete, necessariamente, a opinião da Jovem Pan.





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